04/02/2012

Cristo Na Parede


Não façam imagem alguma na forma de ídolo, semelhança de homem ou mulher (Deuteronômio 4.15.-19.)

"A verdade vos libertará" (passagem da bíblia)

E a verdade não me libertou, pode parecer coincidência ou não, já repeti em tantas prosas minhas essa máxima, que agora é como se eu estivesse fazendo um rejunte de todos os outros textos que só souberam me explicar pela metade, e tentar fazer aqui algo grande que mostrasse quem realmente eu sou, ou confundisse mais a minha verdadeira tragédia, daria uma ode a Roma antiga, pois mais uma vez repito eu essas “injúrias” muitos acham, mas a intenção não era causar uma polêmica nenhum motim ou uma blasfêmia em torno de “e a verdade não me libertou”, não é nada disso que eu pretendo, eu queria dizer isso pra mostrar que eu com todo o meu esforço não consegui extinguir a verdade que a verdade não me libertou, é por isso que ainda tenho caminhado pelo vale das sombras da morte temendo, admito, de pés descalços e ensangüentados, pelo preço que eu pago por discordar da primeira palavra que é a certa e que eu devo aceitar.

Cristo estava lá me fitando a cinco metros da minha cama, crucificado meio torto na parede encardida do meu quarto, sem piscar e eu sem pestanejar parado o observava enquanto ele me observava também. Um demônio estava por detrás da escultura ou dentro da escultura de gesso, que com o passar do vento pelas frestas da janela, a escultura fazia um rangido por causa de o prego estar quase se soltando da parede, então sempre o cristo vivia torto me olhando torto, me cobrando alguma coisa que eu ainda nem tinha feito, talvez por isso ele me cobrasse, então eu não me penitenciava como em todas as noites, porque eu não havia feito nada e eu não era de nada, e isso já fazia um bom tempo, é, fazia um belo tempo que essa inércia de corpos estáticos girando junto a orbita da terra me acompanhava meus olhos mortos mirando o cristo na parede, pele morna, cama desarrumada, o ventilador de teto fazia um barulho chato, temia que ele pudesse cair quando eu estivesse orando.

O diabo tenta impedir essas fugas de nós mesmos, mesmo sabendo que ele sabe o que está perdendo e o que está em jogo. Então paro no meio termo, e durmo por longas eras e quando por fim despertar de meu sono fúnebre, não irei estar, mas serei obrigado a prestar contas com o todo poderoso, aquele que goza da gente de lá do teto sentando em cima de nuvens de algodão enquanto é servido com uma limonada bem gelada pelos anjos celestiais. Em mais um devaneio eu quase blasfemei, essa era uma oração demoníaca, que ficava na minha mente como um relógio de parede a fazer (tic-tac) pra me lembrar que eu podia, ser mais infeliz, só mais um pouco. E então em meio a tantas tagarelices, iria ser assim, uma morte estúpida, explicando decerto a vida estúpida, numa espera infindável de um julgamento estúpido, por quê? Morri pelas mãos do diabo na sua tentativa de vaidade, de não me perder para os braços de Cristo, o mesmo que eu via com os pés encharcados de sangue falso na matriz de São Miguel, naquela cidade pequena embrenhada no mato, sendo o prédio mais alto a casa de Deus.

-Filho você peca como respira
- então arranca minha pele

Contei a um ex-padre que agora virará psicólogo de loucos, meus devaneios, talvez eu fosse hipocondríaco nada que uma dipirona não resolvesse. “e também desenformado e parvo” coisa que o meu subconsciente ainda me lembrava, ele tinha um longo histórico de fado de incapaz, ele me carrega somente porque não podia escapar pra fora de mim. Ô fado, o vida, Severina.

- Você já pensou estar possuído pelo demônio?
- Como?

(Eu achei uma pergunta interessante, porque apesar dele ser psicólogo antes ele fora um padre.)

- Deixa pra lá.
- Como assim deixa pra lá?
- Como padre eu lhe penitenciaria com 130 Ave Marias, como psicólogo eu poderia dizer que você passa por um transtorno psicológico. Como ser humano eu poderia dizer que você só precisa de um pouco de afeto. Conte-me um pouco sobre sua infância.
- Não há nada de muito especial
- Mas conte.
- Não há nada de muito relevante que possa ressaltar nesse breve vida, falida de ar.

Nasci prematuro, com seis meses, minha mãe teve começo de eclampse, e depressão pós- parto, eu fiz o maior esforço pra sair do meio de suas pernas, enquanto ela tentava fechá-las a todo custo, na manhã seguinte do meu nascimento eu tive catalepsia, foi como se eu morresse fisicamente e vagasse espiritualmente babando por sobre as nuvens que engatinhava, os médicos me deram como morto as 16h00min da tarde de sábado, alias odeio sábados, eu ainda não estava totalmente formado, e às 17h00min voltei à vida, eu sei que não havia morrido, mas seu Gilberto me contou assim, ele já estava com um bisturi por entre os dedos os mesmos estavam se coçando. Hoje eu não preciso viver. Dizia às más línguas que eu nasci pra viver, de certa forma sim, ou não. Minha mãe se enterrou nos livros espíritas, num titulo bem sugestivo de um livro que olhei na sua escrivaninha certa vez “Reencarnações em bebês”, não, eu não sou o bebê de Rosemary antes que todos pensem, mas mamãe havia perdido Emily há quinze anos e ainda tinha a esperança de um louco de que ela ainda iria retornar, fosse à forma de um bebê ou na forma de “uma formiga!” eu iria esmagá-la!

Essa ultima palavra admito que tenha acrescentando por esse descontentamento e essa falta de zelo que sofri, eu não vou mentir que se eu tivesse a oportunidade eu faria, mas eu já me equivoquei tantas vezes e tudo é tão passageiro, que eu podia relevar esses descasos da mamãe, ou não. Era ora dela sair daquele estado de apatia que ela sem querer se enterrou há exatos quinze anos, é isso mesmo quinze anos. De certa forma eu posso dizer que eu cresci feliz cercado de pessoas que me mimavam apesar da falta de cuidado de outras, eu ainda sobrevivia. Na melhor das ironias, eu ainda sobrevivia.

- E seu pai, pode me falar um pouco sobre seu herói?
- Papai?


(segurei uma leve gargalhada no canto esquerdo da boca, mesmo estando descontente com a pergunta.)

- Sim seu pai!
- Me perdoe. Claro senhor, discorro sobre meu pai, se assim deseja.

Fausto. Nome de filme de terror né? Esse é o nome do meu pai, não posso dizer que ele foi um herói, mas certamente era o meu herói e isso já bastava. Pra descarregar as magoas e as mazelas dá vida, papai descontava nas bebidas, com um beijo na testa, ele me acorda todas as manhãs de sábado pra passearmos de kart enquanto eu ia abrindo a boquinha ainda cheio de sono. Já eram quase nove da manhã, papai lavou o rosto, e tentou disfarçar o bafo de bebida com algumas balinhas de menta, quando sem perceber, sem nem meu dia começar ele já tinha acabado com ele. Esse é o segundo motivo por odiar sábados, eles não me trazem nada de bom a mente. Hoje em dia Graças a não sei quem, papai se livrou dos vícios do álcool e agora passa todas as noites em cima de pilhas e mais pilhas de documentos que trazia do trabalho (papai era um Workaholic). Vive com olheiras bem fundas, mas ainda me dá um abraço e dorme ao meu lado quando a noite teme em ser mais tempestuosa, ele acha que não sei, mas fico quietinho com um olho aberto e o outro fechado enquanto ele me acolhe em seus braços gigantescos, “o braço que abraça o mundo, e tira qualquer desconforto”.

Então sim. De uma forma torta, papai ainda era o meu herói, e uma figura masculina que eu não quero me espelhar de forma alguma. Papai se dôo demais, mamãe deveria entender que ele fez o que pode, que ele sofreu, que ele também chorou, que quando não tinha ninguém para abraçá-la ele mesmo precisando de um abraço sedia o seu, não, eu não quero ser igual ao papai, eu não quero me frustrar com sentimentos que exigem doação recíproca, eu não quero construir laços, eu não quero ser o arrimo de nenhum alicerce que periga a ruir. Não eu não quero. É por isso que eu finjo que durmo não sentindo seus abraços me acalmarem, papai deve ter a ilusão que ele não merece outra preocupação, chega à mamãe né?! Ela já fez um belo estrago.

-Como é seu nome mesmo. Mil perdões.
-Vinicius senhor.
-Vinicius me conte um pouco sobre você. Com uma conclusão ainda turva eu posso dizer que pelo visto você se doou pelas beiradas, tentando aparar o mundo com as mãos. Mas você cede você também cede, você tem o direito de ruir como qualquer um tem.  

(Fiquei pensativo por alguns instantes, com a cabeça por entre os joelhos, ameaçando chorar fitando bruscamente o chão vermelho, onde algumas lágrimas caíam, fazendo tudo aquilo parecer sangue plástico, bela descrição né?)

Não a muito do que contar sobre a minha vida, não, há verdade é que eu já a contei, eu fui os subtítulos, o pano de fundo, da história de papai e de mamãe, não há absolutamente nada a acrescentar, a não ser um leve descontentamento em não ter sido nada e ainda não ter feito nada, não posso nem se quer sentir comiseração de mim, eu não sou digno de pena, eu nunca precisei dessa palavra medíocre. Eu sempre me cortei rindo, pra chorar? Era eu mesmo que fazia os meus curativos. Mamãe era uma personagem senil mergulhada nas suas expectativas queimadas, estava presa no tempo, e ficou lá por uma vida toda, papai ainda estava ali, mas ele não conseguia ficar o tempo todo, era ele ou eu, eu o escolhi, então ele viveu morrendo, melhor do que morrer pra sempre não é?

- O que eu posso dizer Vinicius...
- Não diga nada, padre ou doutor, perdão. Você me ouviu, isso desatou alguns nós das minhas costas, foi de grande valia o seu silêncio.
- Me diga o que é esse cristo pregado na parede, o que ele representa na sua família?
- Você quer dizer nos destroços dela né? Quer saber a verdade? Nada. Nada além de um objeto que me esqueci de jogar no lixo.

(A vida passava depressa demais, Papai vivia correndo em círculos, feito um rato de laboratório, mamãe finalmente deu um fim a dor, a vida não passou depressa pra ela, ela ainda podia ver enterrando Emily, a dor também não passou depressa, e ela fechou os olhos como quem fecha os olhos de seu bebê pra niná-lo. Então tudo passou devagar demais, tudo correu pro fim a passos tardos de tartaruga, e eu? Talvez por ai, sem um nome, sem identidade, sem história alguma pra contar ou dividir, eu fui simplesmente caminhando, como quem vai não tendo a mínima pressa de encontrar uma estrada.) E lá estava eu, não procurando a verdade. Deixando-a ela vir até mim? Também não. Então? Deixando o tempo correr, ele é dono de promessas falsas, que parecerem verdades ser, mas não passam de areias que ardem os olhos. Enfim, a verdade nunca me libertou. Por enquanto...

“Eu estarei lá para sempre”.

(Vinicius Sousa)

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